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Adaptações ou vandalismos

Blog
Diego Castro

Certas obras de autores consagrados estão passando por reformas em trechos de seus textos, de modo a que se estejam mais em sintonia com o que é considerado politicamente correto na atualidade. Essas mudanças não estão sendo bem recebidas por uma parte da crítica literária. Dois casos que causaram controvérsia envolvem o brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948), autor de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, e o inglês Roald Dahl (1916-1990), autor de Matilda e A Fantástica Fábrica de Chocolate.  

O texto de Lobato foi modificado em razão dos termos considerados racistas que ele usou para se referir a pessoas negras: “macaca de carvão", "carne preta", "beiçuda". Em 2018, toda a sua obra entrou em domínio público, o que levou diversas editoras a quererem republicá-la. Com o aniversário de 100 anos de A menina do narizinho arrebitado, em 2020, e a série de reedições, retomou-se a discussão sobre a exclusão de tais termos nas novas versões de sua obra. A supressão dos termos acima foi endossada pela bisneta do autor, Cleo Monteiro Lobato. Em resposta, o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, chamou a mudança de "mutilação".

O caso do inglês Roald Dahl é parecido. Seus livros para crianças foram limpos de seu conteúdo "ofensivo". O personagem Augustus Gloop, de A Fantástica Fábrica de Chocolate, agora é descrito como enorme, e não gordo. A Senhora Idiota, de Os Idiotas, deixou de ser feia e bestial para tornar-se apenas bestial. No mesmo livro, "uma estranha língua africana" não é mais listada como estranha. As palavras "louco" e "desequilibrado" também foram retiradas por causa da preocupação com saúde mental. O jornalista Brendan O’Neill, do jornal The Spectator, classificou as mudanças de “vandalismo cultural”.

Há exemplos que são difíceis de compreender, de fato. Os Oompa-Loompas não são mais minúsculos, eles são apenas pequenos. E eles não são mais homens pequenos, são pessoas pequenas. Os três filhos do fantástico Sr. Fox são agora suas três filhas. Uma das bruxas de Dahl, que se passava por uma operadora de caixa em um supermercado, virou uma cientista de ponta na versão reeditada.

Os defensores das mudanças argumentam que elas ajudam a ampliar o alcance desses autores aos leitores das novas gerações, deixando-os em sintonia com os tempos atuais. Não apenas eles continuam sendo fontes de estudo e prazer, como evitam ter sua imagem manchada por pequenos detalhes que podem ser suprimidos, sem prejuízo para o entendimento da história e do estilo literário do escritor. São apenas retoques na obra: o principal ainda está lá. Ademais, adaptações são comuns aos mais diversos tipos de arte: na música, no cinema, na pintura, tudo passa por releituras. Isso faz parte do processo.

Os contrários sustentam que não se deve mexer nos textos clássicos, em primeiro lugar porque autor não está mais aqui para dar anuência. Em segundo lugar, porque não veem como apropriado este ‘verniz’ aplicado aos escritores, que devem ser respeitados por seus defeitos e virtudes, produtos do seu tempo. Cabe somente ao leitor a análise crítica, e não a um censor prévio. Outro temor é o de mudanças ‘pontuais’ serem contínuas com o passar do tempo, até o ponto em que uma obra clássica vire uma colcha de retalhos, conforme se mudam os humores, as culturas, o zeitgeist.

Talvez o que esteja em questão seja o valor educativo da arte. Ocorre que educar não é, necessariamente, o papel de um criador ou artista, seja ele escritor, dramaturgo, pintor ou músico. A arte não tem esse compromisso, a priori, embora muitas vezes seja uma excelente ferramenta para tal fim. Ela pode ter objetivos menos nobres: impressionar, entreter, divertir, abstrair, provocar, causar repulsa e revolta até pelo desafio ao politicamente correto. Então uma crítica pertinente é: por que, em vez de querer mudar o texto do passado para que ele exprima valores do presente, esses editores não produzem algo original do jeito que desejam? 

No bestseller The Coddling of the American Mind (numa tradução livre, Fazendo mimo na mente americana), o psicólogo Jonathan Haidt e o jornalista Greg Lukianoff percebem um aumento da fragilidade nas gerações mais novas, especialmente entre quem chegou às universidades pós-2013. Por uma série de fatores (mídias sociais, paternidade helicóptero, etc), são pessoas com tendência a valorizar sobremaneira a segurança e a considerar que “palavras são violência”. A cultura do cancelamento é um sintoma disso. A reescrita desses livros também. “Prepare seu filho para a estrada, não a estrada para seu filho”, é a citação inicial do livro e lembrete de que o mundo não é feito de algodão. Ou seja, precisamos ser fortes o suficiente para aprender a lidar com o que não gostamos.

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